Rei Charles III durante a cerimônia do funeral da rainha Elizabeth II, em 19 de setembro, no Castelo de Windsor, Reino Unido. Foto: Max Mumby/Indigo/Getty Images

Para entender melhor o que pode acontecer daqui em diante no Reino Unido, conversamos com dois especialistas: Gilberto Rodrigues, professor e coordenador do curso de relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), e Antônio Brito, professor do mesmo curso na Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Confira.

O que esperar do reinado de Charles III? A agenda ambiental terá mais foco?

Antônio Brito: Será muito difícil substituir a rainha Elizabeth II. Além de ter tido o reinado mais longo da história, ela sempre teve uma postura muito carismática e acompanhou os principais acontecimentos do século 20. O rei Charles III, ao longo da sua trajetória, envolveu-se em muitos escândalos e não tem o carisma que a mãe tinha.

Gilberto Rodrigues: O novo rei Charles III assume com um enorme desafio à frente: manter relevante a monarquia para os súditos no Reino Unido, as possessões britânicas (antes conhecidas como colônias) e a chamada Commonwealth.

Commonwealth: associação formada por 54 países, incluindo o Reino Unido. Embora qualquer nação possa integrar o grupo, quase todas já foram governadas pela monarquia britânica. Hoje, a maioria é independente, mas 14 delas ainda têm o rei britânico como chefe de Estado.

Após um longo reinado, com muito prestígio construído ao longo de décadas, a rainha Elizabeth II deixa um legado de estabilidade e de “poder simbólico” para a monarquia britânica. Charles III não dispõe desse capital simbólico da mãe, ao contrário, ele precisará construir sua imagem como rei, e para isso a sua agenda poderá ser determinante. Nesse sentido, a agenda ambiental [políticas voltadas ao cuidado do meio ambiente], na qual o então príncipe Charles era muito ativo, poderá ganhar mais relevo em suas falas e visitas internacionais — lembrando que a monarquia tem uma margem de atuação limitada na política.

Qual é a função do rei perante o Reino Unido e o governo?

Antônio Brito: O Reino Unido tem uma monarquia parlamentarista em que, cada vez mais, a função do monarca foi se diminuindo. O rei, chefe de Estado, tem praticamente uma função mais cerimonial e protocolar. O primeiro-ministro é quem, de fato, governa.

Gilberto Rodrigues: Nos Estados democráticos, como o Reino Unido, o rei tem uma função residual de poder e exerce funções protocolares [que seguem regras já estabelecidas]. Como chefe de Estado, no campo das relações internacionais, assina acordos e tratados internacionais, mas também pode delegar essa função para seus representantes. No campo político interno, mantém encontros periódicos com a primeira-ministra (Liz Truss) e comparece uma vez ao ano no Parlamento para o “discurso do trono”.

Na vida política cotidiana, o rei Charles III terá pouco a fazer, pois, nas monarquias contemporâneas, o parlamento governa. Mas é nos momentos de crise, como conflitos internos e internacionais, que o rei pode exercer um papel simbólico como mediador, de unir e mobilizar os cidadãos para enfrentar uma situação grave, resistir e superar problemas. Ele tem o papel de manter a identidade e motivar as pessoas para causas diversas.  

Como o rei influencia no governo dos demais países conectados ao Reino Unido?

Antônio Brito: Alguns analistas pensam que talvez o Reino Unido diminua e fique restrito à Inglaterra e ao País de Gales, com os quais tem um vínculo desde o século 16. Mas a grande probabilidade é que [a monarquia] perca muito da sua representatividade nas colônias.

Gilberto Rodrigues: Se o papel político do monarca no Reino Unido é residual e protocolar, em países da Commonwealth isso é ainda mais verdadeiro. Neles, o rei mantém um ou uma representante da monarquia que exerce as funções de chefe de Estado, em regimes parlamentares. Mas essas funções não têm nenhum peso político na prática, é algo mais cultural e identitário. Apesar do processo de descolonização do século 20, em que muitas ex-colônias se tornaram independentes, o Reino Unido soube manter sua influência por meio desse arranjo, de a monarquia seguir exercendo a chefia de Estado de muitos países, mesmo sem poder de fato. Espera-se que a maioria desses países realize, no futuro, consultas à população para saber se mantém a monarquia ou se adota a república.  

O que a soberania da monarquia britânica representa atualmente?

*Antônio Brito: A monarquia em si ocupa um papel muito mais de tradição histórica do que propriamente uma função política. E há um grande risco de que ela vá se desfazendo, porque as monarquias já tiveram seu momento na história e, hoje, [o modelo de governo mais aceito no mundo] é realmente a república. Há pouco espaço para as monarquias. E, mesmo para a mais consolidada e tradicional (que é a do Reino Unido), a tendência é de que vá se enfraquecendo.

Talvez, a rainha Elizabeth II represente o fim do poderio do Reino Unido que, desde os séculos 17, 18 e 19, usurpou [apropriou-se de forma violenta] tudo das colônias. [Boa parte] da riqueza do Reino Unido é da exploração dos povos indígenas das colônias. Estamos falando, por exemplo, do massacre de 80 milhões de indígenas da América. O mundo, hoje, não permite símbolos de poder histórico de exploração dos povos oprimidos. Penso também que muitos ingleses são contra a monarquia. Creio que a realeza seja símbolo da exploração.

Gilberto Rodrigues: A monarquia e a aristocracia [governo feito por pessoas nobres] que a acompanha são resquícios de um tempo em que se acreditava e se defendia que algumas pessoas eram superiores a outras em virtude do sangue (os nobres tinham “sangue azul”).  Desde a independência dos Estados Unidos, em 1776, e a Revolução Francesa, em 1789, o princípio da igualdade entre as pessoas passou a prevalecer na formação dos estados nacionais e se tornou princípio universal, com a Carta da ONU [Organização das Nações Unidas], de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Por outro lado, nas democracias, como mostraram os filósofos do Iluminismo [movimento intelectual do século 18], a legitimidade do governo depende da vontade e dos votos da população. Nesse aspecto, a monarquia é algo anacrônico, ultrapassado, que deveria ceder lugar a formas de governo que privilegiassem a vontade popular e a igualdade.

Porém, a monarquia inglesa, assim como outras monarquias na Europa, segue tendo um apelo e uma relevância cultural e identitária que justifica para uma parte da população sua permanência e continuidade. Esse papel e sua relevância dependem, no entanto, da conexão que o rei e sua família mantêm com o povo, suas demandas e os desafios contemporâneos. A existência da monarquia como instituição não está garantida como antes. Por isso a ideia de reinvenção e inovação, aliada a uma ética de comportamento, permeia cada vez mais os novos reis e rainhas no século 21.

*Essa resposta foi atualizada em 21 de setembro, às 14h30, após complemento do especialista.

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Comentários (1)

  • Diana

    1 ano atrás

    Vc tem jornalismo

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