escola afro-brasileira
Primeira escola afro-brasileira do país, localizada em Salvador (BA). Crédito de imagem: Escola Maria Felipa/divulgação

Primeira escola afro-brasileira do país, a Maria Felipa, que fica em Salvador (BA), tem a história africana e suas influências na cultura brasileira como referência central para o aprendizado das crianças. Nessa escola, o objetivo é oferecer uma educação que considera as tradições ancestrais do nosso povo e sua diversidade de raça, gênero e classes sociais. Para entender melhor como a instituição funciona, a repórter mirim Gabriela F., de 12 anos, conversou com Maju Passos, uma das sócias.


Maju Passos, empreendedora, dançarina e sócia da Escola Maria Felipa. Crédito de imagem: arquivo pessoal/reprodução

O que é uma escola afro-brasileira?

Somos uma escola registrada pelo Ministério da Educação (MEC), assim como qualquer outra, só que temos como centro do nosso currículo pedagógico a cultura afro-brasileira, com as influências africanas e também a história da África e do nosso povo, de onde a gente veio. Também há foco na cultura brasileira dos povos originários.

Como você começou a carreira?

Na minha carreira, tenho três campos de atuação: dançarina, produtora e empresária. Com cinco anos, eu entrei em uma academia de balé aqui de Salvador e fiquei lá por dez anos. Aos 15, eu saí, mas sempre amei dançar. Então, quando eu cheguei à idade de prestar vestibular, resolvi fazer dança. E aí, nunca mais parei de dançar.

Inclusive, acabei de apresentar um espetáculo solo. Alguns anos atrás, eu estava fazendo muitos shows com banda de forró e no campo da dança contemporânea, em que eu atuo hoje. Eu também já trabalhei como professora, coreógrafa e pesquisadora de dança. Hoje faço mestrado em dança na Universidade Federal da Bahia.

Também sou empresária. Aos 21 anos, eu abri minha primeira empresa, que foi a produtora cultural Mazurca Produções, que faz, em setembro, 18 anos. Eu já produzi muitos eventos culturais, como shows e circulação de espetáculos.

Em 2020, eu me tornei sócia da Maria Felipa. Eu sou mãe de uma criança lida socialmente como branca: meu filho Ayo é loiro, com pele clara. Quando me tornei mãe dele, eu fiz muitos questionamentos, porque, infelizmente, aqui em Salvador, mesmo sendo a cidade com mais pessoas negras fora da África, muitas delas não estão nas escolas particulares, por exemplo. Eu não queria que meu filho estudasse em um espaço onde ele não visse a mãe dele em lugares de representatividade, poder e liderança.

Foi aí que me tornei sócia da Maria Felipa. Porque eu achava que ele, enquanto criança branca, precisaria se formar também compreendendo e entendendo a história e a potência da história da mãe dele. Desde então, venho empreendendo com a minha sócia, Bárbara Carine, a idealizadora da escola, mãe de Iana.


Gabriela F., 12 anos. Crédito de imagem: arquivo pessoal/reprodução

Quais foram as maiores inspirações para a criação da Maria Felipa?

A Bárbara idealizou a escola para criar a filha dela, Iana, uma menina negra, em um espaço educacional onde ela pudesse estar protegida do racismo estrutural [quando o racismo já faz parte do dia a dia de uma sociedade]. Infelizmente, muitas meninas e meninos negros aprendem no colégio que a nossa história vem de um processo de fracasso, submissão, quando, na verdade, o mundo surgiu na África. Então nos foi retirada a possibilidade de ter essa história contada.

Eu acho que a maior inspiração é construir um lugar em que a gente possa oferecer oportunidades diferentes das que tem para as crianças de hoje, para que elas possam se sentir confiantes e mais conectadas com si mesmas, a partir de uma educação que lhes traga elas uma perspectiva de potência da própria história.

Conheça mais sobre a Escola Maria Felipa.

Quais foram os maiores desafios que vocês enfrentaram no início?

Olha, são vários, né? Acho que os primeiros foram logo na inscrição do projeto, na dificuldade que a gente teve em relação às pessoas questionarem tanto o porquê de uma escola afro-brasileira. Mas isso não acontece, por exemplo, com escolas canadenses, norte-americanas, alemãs e até chinesas que temos aqui no Brasil. Então acho que essa foi a primeira barreira que a gente enfrentou. Depois foi o desafio da própria comunidade, no geral, de aceitar e nos entender enquanto escola. Porque algumas pessoas ainda não nos entendem como uma escola formal, acham que é uma iniciativa dentro de algum projeto ou algo do tipo. Estão sempre tentando nos diminuir, né?

O outro desafio é porque são duas mulheres líderes. Infelizmente, a gente vive em um país onde não se dá o valor merecido às mulheres. Temos a nossa liderança sempre questionada, então sentimos que isso é um grande desafio para as pessoas: confiar em um negócio em que quem está à frente são duas mulheres negras. E isso perpassa por vários aspectos, desde a família que vai matricular a criança lá e, quando fica sabendo que são duas mulheres negras na direção, dizem “hmm, isso funciona mesmo?” até, por exemplo, as vias de financiamento. Toda empresa precisa de recursos financeiros, então, quando a gente solicita no banco, passa por várias situações, sobretudo porque somos duas mulheres negras e mães solo.

Infelizmente, isso pesa para a gente, mas não deveria, tá, Gabi? E eu estou aqui falando para você, para de alguma forma inspirar você e outras crianças, sobretudo meninas, a não acreditar que precisam de uma figura masculina ao lado para se validar, nós somos muito potentes. Essa visão está até nos filmes a que a gente assiste.

Ainda bem que isso está mudando um pouco. Eu acho que a sua geração está tendo acesso a outros conteúdos, diferentes da minha, que sempre tinha que ter o príncipe encantado para que fôssemos alguém no mundo.

Você acredita que está conseguindo atingir os seus objetivos com a escolinha?

Eu acredito sim, a gente já está com seis anos de existência. A escolinha vem impactando muitas vidas — a gente fala escolinha como uma maneira carinhosa de chamar, mas é uma escola, né? Começamos com o ensino infantil, mas hoje temos o fundamental, recebendo crianças de 2 a 10 anos. E também damos cursos de formação: a Maria Felipa já formou mais de 6 mil pessoas em todo o Brasil em letramento racial.

Letramento racial: práticas pedagógicas que conscientizam sobre racismo e antirracismo.

Nesses seis anos, mudamos de sede aqui em Salvador para uma três vezes maior do que a primeira e também estamos indo para o Rio de Janeiro. Acho que, aos poucos, estamos alcançando cada vez mais o nosso objetivo, que é proporcionar uma educação emancipatória para as nossas crianças. E o que é isso? É um ensino que educa para a potência, que vai falar para as crianças negras e não negras, para todas as crianças, que elas são potentes, que a gente precisa acreditar que pode ser quem quiser.

Quais são os maiores valores e princípios que guiam a educação oferecida na sua escola?

É educar para a potência, celebrar a diversidade, ter um espaço educacional onde a gente possa oferecer realmente esse ambiente diverso com crianças de classes sociais e corpos diferentes. Visamos também criar as bases da alfabetização e letramento trilíngue, porque trabalhamos com português, inglês e Língua Brasileira de Sinais (Libras).

A gente tenta, por todas as vias, possibilitar às crianças um espaço onde possam se sentir seguras para ser elas mesmas. Na Escola Maria Felipa, também acreditamos que os saberes ancestrais são produção de conhecimento. E para conseguir isso tudo, temos um projeto social dentro da nossa escola, que é particular. Nele, 30% das vagas são oferecidas a pessoas negras e/ou indígenas em situação de vulnerabilidade social, ou seja, pessoas que não podem pagar.

Qual seria, para você, a educação ideal para ter uma sociedade justa e sem discriminação?

Eu acho que por aqui estamos chegando perto disso. Entre o ideal e o real, existe o possível, e estamos fazendo o possível para entregar uma educação em que a gente acredita, que respeita todas as religiões, raças, gêneros e modos de família.

Como você enfrenta o racismo? Quais foram as suas principais dificuldades na infância?

Bom, eu venho de uma relação interracial, minha mãe é branca e meu pai, negro. Eu venho de uma classe social em que tive a oportunidade de estudar, desde sempre, em escolas particulares.

E eu sempre era a única negra. Na instituição de balé, a mesma coisa. E racismo era meio que uma palavra que eu nunca tinha escutado. Eu fui começar a ouvir sobre racismo já na fase adulta. Então, o principal desafio quando criança foi justamente viver o racismo e não identificar o que ele era. E aí, eu achava que era tudo problema meu.

Eu fui me tornando uma criança e adolescente com vergonha de mim mesma, me achando feia, alisando o meu cabelo. Eu alisei meu cabelo por 17 anos, comecei quando tinha a sua idade. E estou vendo você hoje tão linda com seu cabelo trançado… Eu não tive essa oportunidade, não fui ensinada a pentear um cabelo como o meu, mesmo sendo criada em um ambiente com muito amor.

Com quantos anos você conseguiu se enxergar como negra? Como conseguiu se aceitar?

Foi tarde, viu? Eu tenho 39 anos e comecei a me entender enquanto uma mulher negra mais ou menos com 30. Foi quando eu parei de alisar o cabelo e comecei a sair dessa posição de querer agradar. Porque nós, meninas negras, aprendemos desde cedo a ter que agradar. Temos que ser as melhores alunas, as mais legais, que não erram e entregam mais do que todo mundo. Mais ou menos com 30 anos, comecei a estudar e fui percebendo que tinha alguma coisa errada.

Quando eu me tornei mãe, aos 33, foi definitivo. Porque sabe o que acontece? As pessoas brancas acham que meu filho não é meu e chegam a me questionar sobre isso. Então, quando vi a minha maternidade sendo questionada em virtude da cor da minha pele, eu me apropriei e falei: eu sou uma mulher negra.

Se você pudesse dar um conselho para pessoas que decidam criar iniciativas semelhantes à sua, qual seria?

Fé, tenha fé, acredite no que você está fazendo, não deixe ninguém diminuir a sua intenção. E, sobretudo, mantenha-se sempre alinhado ao seu propósito. Na Maria Felipa, uma das coisas que nos deixa firmes é acreditar que a gente não anda só, que temos uma conexão com a ancestralidade e que ela nos guia.

O sistema faz, todo o tempo, com que a gente queira se desviar do nosso propósito; nos sentimos, de vez em quando, nadando contra uma maré enorme que não quer que a gente exista. Então, o meu maior conselho é este: confie no seu propósito e fique firme. Hoje eu li uma frase que dizia algo como “eu já vivi vários fins do mundo, e no dia seguinte estava tudo bem”. Então viveremos dias terríveis, mas sempre teremos o amanhã.

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