Crédito de imagem: Bernardo Coelho/reprodução

Em 23 de maio de 2021, Aretha Duarte se tornou a primeira mulher negra latino-americana a alcançar o topo do Monte Everest, a montanha mais alta do mundo, a 8.848,86 metros de altitude (distância entre um ponto e o nível do mar). Para isso, Aretha juntou em torno de 400 mil reais — cerca de 133 mil reais apenas coletando e vendendo material reciclável —, além de obter ajuda de voluntários para o preparo. Desde sempre a montanhista acreditou que, com a escalada, haveria mais visibilidade, e até mesmo recursos financeiros, para projetos sociais e ambientais de onde vive. O repórter mirim Davi K., 11 anos, conversou com Aretha sobre sua carreira e sonhos.

Davi K., 11 anos. Crédito de imagem: arquivo pessoal/reprodução

Você poderia contar como foi a sua infância?

Foi maravilhosa. Eu cresci no Jardim Capivari, na periferia de Campinas (SP), onde por muitas vezes faltavam saneamento básico, educação de qualidade, centro de saúde etc. Mas, ainda assim, tive uma excelente estrutura familiar (…). Isso me garantiu uma juventude muito harmoniosa, feliz e plena (…). Eu podia brincar de qualquer coisa e jogar qualquer esporte disponível. 

Com qual idade você decidiu perseguir seus sonhos?

Na verdade, eu nunca entendi que estava perseguindo sonhos. Eu perseguia objetivos. Por exemplo, quando eu quis um brinquedo — um par de patins que era lançamento e meus pais não podiam comprar — juntei materiais recicláveis, vendi esses itens e comprei os patins. Em outro momento, eu quis ajudar com serviços domésticos. Juntei materiais recicláveis por alguns meses e comprei uma lavadora de roupas e um fogão para nossa casa. Agora, na vida adulta, eu desejei muito ter a minha casa, o meu carro, poder viajar e garantir qualidade de vida para a família, principalmente para a minha mãe e sobrinhos. E aí eu venho trabalhando para que tudo isso aconteça.

Mas aí surgiu um objetivo que estava completamente distante da minha realidade: o de escalar o Everest. O que de fato estava por trás disso era o sonho de gerar transformação social e ambiental (…) na vida da minha família, comunidade e sociedade.

Então, a primeira vez que eu me vi realizando um sonho foi quando decidi realizar o projeto que se chamou Da Sucata ao Everest. Quando fui para o Everest, o objetivo não era simplesmente estar no topo daquela montanha, era, de fato, alcançar recursos e visibilidade suficiente para promover transformação social e ambiental. Eu só me percebi com o direito de sonhar e realizar agora na vida adulta.

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⁠Como surgiu a ideia de subir o Monte Everest e que relação isso tem com a sua atividade de catadora de recicláveis?

Eu já trabalhava como montanhista desde 2011, na operadora de montanhismo Grade6. Comecei como vendedora, depois assistente de guia e, atualmente, sou guia de alta montanha.

Em razão desse trabalho, eu ganhei muita experiência na área. Eu estive em montanhas em sete países e alcancei excelente condicionamento físico, conhecimento técnico e emocional. Mas, só em 2019, comecei a desejar essa escalada no Everest, porque foi quando eu vi algumas fotos de um colega de trabalho. Eu vi uma que me encantou muito do Vale do Silêncio, uma parte do Everest entre os campos um e dois. E aí isso ficou no meu imaginário.

Em março de 2020, era para eu guiar quatro pessoas até o campo base do Everest, mas a viagem foi cancelada em consequência da pandemia. No mesmo dia, eu determinei: “Na minha próxima ida ao Nepal, quero ir mais alto que o campo base, quero conhecer o Vale do Silêncio e, quem sabe, chegar ao topo”. O fato é que, por mais que eu já tivesse a experiência física, técnica e emocional, não tinha o recurso financeiro necessário para participar de uma expedição como essa. Então eu voltei a trabalhar como catadora de recicláveis, a juntar todo tipo de material, como vidro, papelão, plástico, cobre, ferro, alumínio, aço. Separava por categoria e vendia. Esse trabalho durou aproximadamente 13 meses e não trabalhei sozinha. Familiares, amigos e até desconhecidos ajudaram.

Como foi a sua fase de preparação para enfrentar esse desafio e quem te ajudou a realizar essa conquista?

Bom, para escalar o Everest são necessários cinco requisitos básicos de conhecimento técnico, físico e emocional: alcançar excelente condicionamento físico; conhecer escalada em rocha; em gelo; ter volume de montanha; e ter escalado uma montanha de 7 a 8 mil metros.

Eu tinha cumprido esses passos com meu trabalho como guia e montanhista. No período de um ano antes do Everest, eu fiz minha manutenção física, porque, de fato, há o risco de morte — em média, oito por temporada. Então eu intensifiquei meu treinamento com três amigos formados em educação física que trabalharam comigo voluntariamente: Jacky Lopes (como minha personal trainer, focada em exercícios funcionais), Dani Sarmento (pilates, para respiração e postura) e Renato Fioravante (natação).

Eu também tive uma nutricionista voluntária, a doutora Amalia Novaes, que me ajudou com essa questão da alimentação e suplementação, e também com o auxílio do Thiago Lacerda, fisioterapeuta e osteopata. Ele me ajudou com a questão de equilíbrio ósseo e muscular, fundamental para evitar qualquer tipo de lesão. Também colaboraram comigo a Rita Bragatto, psicóloga, e a Anne Hamon, mentora que me ajudou a organizar as ideias do projeto. Essa equipe multidisciplinar e voluntária foi fundamental para potencializar a minha preparação.

Quantos acampamentos você fez enquanto subia?

Uma expedição no Everest dura bastante, reservei 60 dias para estar na montanha e acabei ficando 54. De Lukla (2.700 metros de altitude) — vilarejo onde se pousa com o avião bimotor — até o campo base (5.300 metros), foram dez dias de caminhada. Daí em diante, começou de fato a escalada em quatro etapas. Três delas têm a ver com o ciclo de aclimatação, ou seja, de adaptação ao ar rarefeito [pouca concentração e variedade de gases]. Nós subimos e descemos ao campo base três vezes: vamos ao campo um e voltamos, depois ao dois e ao três, para gerar essa adaptação fisiológica e bioquímica. E depois, quando surge uma janela de tempo bom, nós cumprimos a quarta e última etapa, a subida definitiva ao topo e o retorno.

Quando surgiu essa janela, fomos direto ao campo dois, pois não é preciso pernoitar no um. Na sequência, fomos ao terceiro, e também pernoitamos lá. Depois vem o quatro, que é o último acampamento (8 mil metros), descansei ali por algumas horas e saí para o ataque ao cume [nome dado à escalada final ao topo]. Saí para o ataque ao cume por volta das 23h30, no horário de Nepal, e cheguei ao topo ali pelas 10h30. Fiquei aproximadamente quinze minutos ali para tentar comer alguma coisa e fazer fotos e vídeos, e depois desci direto para o campo quatro, em seis horas de descida. Neste eu dormi e, no dia seguinte, fui ao campo dois e, no outro, ao campo base. Então, na descida, pulamos de dois em dois acampamentos.

⁠Quanto tempo levou da base do Everest até o topo e do topo até a base?

Foram 47 ou 48 dias, porque os últimos sete dias, mais ou menos, dos 54 foram apenas esperando a janela de tempo bom para o retorno de helicóptero. Depois que desci, havia sido decretado um novo lockdown [da pandemia]. Então todos os vilarejos e refúgios abaixo do campo base estavam fechados, por isso a descida teve de ser via helicóptero até a capital do Nepal.

Ao longo da subida, você pensou em desistir? 

Curiosamente, em nenhum momento pensei em desistir. Eu estava muito motivada. O propósito sempre foi garantir transformação social e ambiental com conquistas coletivas. Eu sabia que o sucesso da minha expedição poderia reverberar em recursos principalmente financeiros e outras oportunidades para compartilhar com pessoas da periferia. Eu moro no Jardim Capivari, bairro periférico de Campinas (SP), até hoje. Muitas mudanças precisam acontecer em prol de qualidade de vida, segurança, justiça e dignidade dos cidadãos que vivem aqui. Mas eu tive muitos desafios a serem superados sim, como princípio de edema pulmonar [acúmulo de líquido nos pulmões], queimadura de córnea, além do machismo que sofri na montanha. Mas nada disso me fez pensar em desistir, eu tentava realmente reconhecer o que podia fazer de melhor para superar esses obstáculos.

Quais foram as maiores lições que você aprendeu e gostaria de compartilhar com aqueles que acham que seus sonhos são impossíveis?

Aprendi muitas lições, tanto no Everest como em outras empreitadas. Eu sempre digo que montanha é, para mim, uma escola. Eu aprendo muito lá e consigo trazer ao meu cotidiano. Algumas dessas lições têm a ver com a certeza de que existe, sim, preconceito, machismo, racismo e pessoas buscando status quo, ou seja, querendo ser melhores que as outras, humilhando as outras e agindo de maneira desonrosa. Mas também aprendi que resultados tão grandiosos e sonhos tão desafiadores só são realmente possíveis quando a gente trabalha em coletividade. Eu não cheguei ao topo do Everest sozinha, tive a ajuda de muita gente, pessoas diversas, que realmente se engajaram e buscaram pelo propósito em comum. Eu sou muito grata por ter recebido tanta ajuda e tanta gente ter acreditado em mim. Esse cume não é meu, é nosso. Que isso possa ser trazido para o dia a dia na cidade.

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