Palavras chave: enchente, precipitação, umidade, escoamento e previsão.
Autor: Luca Brocca
Revisores: Kavin e Momo
À medida que a Terra continua a aquecer, fenômenos meteorológicos extremos, como tempestades severas e alagamentos, tornam-se mais comuns, colocando muitas vidas em perigo. Para ajudar a manter as pessoas seguras, desenvolvemos um modelo computacional chamado DTE Hydrology — uma espécie de videogame científico — que pode alertar as pessoas se houver probabilidade de enchentes na região onde moram. Esse modelo é conhecido como “gêmeo digital” da Terra, porque é quase como ter uma cópia do planeta em um computador! Podemos medir a quantidade de chuva e a umidade do solo tanto na Terra como a partir de satélites, e o DTE Hydrology é capaz de utilizar esses dados para prever a probabilidade de inundações em determinada área. Também podemos usar o modelo para “fazer experimentos” no gêmeo digital da Terra para aprender mais sobre o que causa enchentes. No futuro, esperamos utilizar esse sistema para salvar ainda mais vidas, prevendo deslizamentos de terra e monitorando incêndios florestais, por exemplo.
Imagine que são as férias de verão, mas está chovendo há dias. Que chatice! Você dormiu até tarde todas as manhãs, jogou todos os seus jogos on-line favoritos, assistiu a filmes e enviou mensagens de texto para seus amigos… mas agora não sabe mais o que fazer. Você sonha acordado em aproveitar o sol do verão com seus colegas, talvez nadando ou pescando em um rio próximo. Você espera que a chuva pare logo! Você caminha até a janela para dar uma olhada no tempo lá fora e fica chocado ao ver que as casas logo abaixo do morro estão com água lamacenta até as janelas… e a água que está subindo está se aproximando rapidamente da sua própria residência! Árvores, lixo e até alguns carros passam flutuando — você vê botes de resgate em uma casa próxima ajudando seus vizinhos que subiram no telhado para escapar da enchente. Uma enchente relâmpago*!
Embora essa cena possa parecer com o início de um filme de suspense e tragédia, as notícias diárias nos dizem que esses cenários também estão acontecendo na vida cotidiana. No verão de 2021, tempestades intensas provocaram enchentes relâmpago na Europa. Rios e riachos subiram velozmente, ocasionando a morte de pelo menos 243 pessoas, a maioria delas na Alemanha. Numa escala ainda maior, as fortes chuvas de monções no verão de 2022 causaram enchentes extremas no Paquistão, provocando a morte de 1.739 indivíduos — incluindo 647 crianças — e ferindo outros 13 mil. Além de causar mortes e danos físicos às pessoas, as enchentes podem arrasar plantações, reduzindo nosso abastecimento alimentar, e arruinar casas, estradas, hospitais e redes eléctricas, paralisando a vida de todos. As inundações no Paquistão causaram danos estimados em 30 bilhões de dólares (em torno de 150 bilhões de reais), por exemplo.
As atividades humanas que liberam dióxido de carbono e outros gases responsáveis pelo efeito estufa estão aquecendo a Terra e alterando o clima. À medida que as temperaturas continuam a subir, prevê-se que o número e a gravidade das inundações aumentem, mas as enchentes não são o único problema — os cientistas calculam crescimentos tanto na frequência como na intensidade de outros eventos meteorológicos severos, como deslizamentos de terra, secas e incêndios florestais.
Embora seja claramente importante fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para reduzir as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEEs) e combater as alterações climáticas, a curto prazo temos também de descobrir maneiras de proteger as pessoas de fenômenos meteorológicos extremos, como as enchentes. Uma das razões pelas quais as inundações podem causar muitas mortes e feridos é porque são difíceis de prever. Como o nome indica, as enchentes relâmpago ocorrem rapidamente, e as pessoas que estão em seu caminho muitas vezes são avisadas em cima da hora, portanto não conseguem abandonar o local a tempo. Se existisse um sistema preciso que pudesse antever quais são as áreas com probabilidade de inundação, as pessoas poderiam ser alertadas com antecedência e se deslocar para um local seguro. Esse sistema poderia salvar muitas vidas.
O conhecimento detalhado do ciclo da água* é necessário para entender por que as inundações acontecem e descobrir como prevê-las. Três componentes principais do ciclo da água são particularmente importantes quando se trata de inundações e sua previsão: precipitação, umidade do solo e escoamento* (Figura 1). A precipitação (chuva, neve, granizo) cai das nuvens e pode fluir diretamente do solo para rios e riachos, aumentando o nível desses cursos de água. A quantidade de escoamento depende da umidade do solo, que, se já está saturado de água, pode reter menos precipitação, resultando em um fluxo maior e provocando maior risco de alagamento. Se esse escoamento fizer com que rios, córregos e riachos transbordem, podem ocorrer enchentes.
Embora essa explicação possa parecer simples, existem muitos outros processos envolvidos no ciclo da água, e todos eles interagem entre si de maneiras difíceis de prever. Além disso, os seres humanos influenciam no ciclo da água e afetam a probabilidade de inundações — não apenas com as alterações climáticas intensificadas por hábitos da humanidade, como também por meio do desmatamento de florestas, da construção de cidades e estradas e de alguns processos de agricultura. Todos esses fatores, naturais e provocados pelo homem, tornam extremamente difícil prever exatamente quando e onde ocorrerão as enchentes.
Obviamente, cientistas não podem fazer experiências com o clima da Terra para aprender a prever inundações. Então, como podemos saber o que aconteceria se, por exemplo, 15 centímetros de chuva caíssem em uma área com solo moderadamente saturado? Os rios e riachos locais transbordariam? Se sim, em qual volume? Para estudar situações difíceis de investigar diretamente, os cientistas podem desenvolver uma simulação realista, como um videogame científico, que recria com precisão as condições da Terra. Esse “jogo” é chamado de modelo de computador*. Usando esse “jogo”, os estudiosos podem fazer perguntas do tipo “e se” como a questão acima — eles podem ajustar a quantidade de chuva, umidade do solo e outras condições para ver quanto os cursos de água subiriam em determinada área (Figura 2). Isso é quase como ter uma cópia da Terra no computador para fazer experimentos, e é por isso que esses modelos são chamados de gêmeo digital* da Terra (em inglês, Digital Twin Earth – DTE ). Nosso grupo vem desenvolvendo um DTE focado nos processos relacionados à água na Terra. Nós o chamamos de DTE Hydrology e esperamos que um dia ele colabore para prever se é provável que ocorra uma enchente na sua área.
Para prever enchentes em situações reais, o DTE Hydrology precisa de uma enorme quantidade de dados sobre as verdadeiras condições da Terra. Como mencionamos anteriormente, os dois principais processos que contribuem para o escoamento — e as enchentes que ocorrem quando há excesso de água — são a precipitação e a umidade do solo. Esses dois fatores podem ser medidos diretamente (exatamente onde estão acontecendo) ou remotamente (de outro lugar). A medição direta da precipitação pode ser realizada por meio de pluviômetros, que captam e coletam a água da chuva para que a precipitação possa ser medida (em polegadas ou centímetros) após cada ocorrência. A umidade do solo pode ser determinada diretamente coletando amostras da superfície e medindo a quantidade de água que elas contêm (Figura 3-A). Embora as medições diretas sejam extremamente precisas, não é possível realizá-las em todas as áreas da Terra, além de as condições mudarem constantemente com o clima e as estações. Assim, a medição direta nos fornece informações limitadas. Medições remotas geralmente envolvem imagens de satélite da Terra. Os satélites podem ser equipados com sistemas capazes de fazer registros digitais de uma região muito grande ou mesmo de toda o planeta, o que é uma grande vantagem em relação às medições diretas — e os cientistas podem interpretar essas imagens para aprender sobre muitas condições na Terra, incluindo precipitação e umidade do solo.
A utilidade das imagens de satélite para prever inundações ou outros eventos relacionados com o clima depende de sua resolução*, ou nível de detalhamento. A precipitação e a umidade do solo — e, portanto, a possibilidade de inundações — podem variar muito ao longo de pequenas distâncias, fazendo com que as imagens de satélite sejam obviamente mais úteis para a previsão de enchentes se puderem “ampliar” pequenas áreas (Figura 3B). O que faria você se sentir mais seguro: um sistema de previsão de inundações de baixa resolução capaz de comunicar apenas que uma enchente provavelmente aconteceria em algum lugar a um raio de cem quilômetros de sua casa ou um de alta resolução que pudesse antever uma provável inundação a um quilômetro da sua casa? Outro aspecto da resolução tem a ver com a frequência com que um satélite tira uma imagem do mesmo local. Quanto maior for essa capacidade de resolução, maior será o número de dados que corresponderão à situação na Terra, em tempo real. Enchentes podem se desenvolver rapidamente e ocorrer durante períodos muito curtos. Novamente, o que faria você se sentir mais seguro: um sistema de previsão que coleta dados uma vez a cada três dias ou um que reúne informações uma vez a cada hora? Alguns satélites modernos podem fornecer dados de resolução extremamente alta, que são excelentes para a previsão de inundações [3].
Ainda estamos desenvolvendo o DTE Hydrology, utilizando uma combinação de medições diretas e remotas. São muitos dados para coletar, mas há ainda mais! Embora este artigo se concentre na precipitação e na umidade do solo, também fazemos medições sobre a evaporação, a profundidade da neve e o volume de água que flui pelos rios. Você pode conferir o DTE Hydrology aqui . Até agora, o nosso modelo computadorizado cobre uma área de 1.580.000 km2 na bacia do Mediterrâneo, mas estamos trabalhando para expandi-lo para, futuramente, incluir toda a Europa.
Quando estiver totalmente desenvolvido, o DTE Hydrology será capaz de fazer muito mais do que prever enchentes… poderá indicar com precisão deslizamentos de terra e monitorar incêndios florestais. À medida que as alterações climáticas continuam e enfrentamos cada vez mais fenômenos meteorológicos extremos (e mais perigosos), os sistemas de detecção precoce que podem prever inundações e outras catástrofes naturais colaboram para salvar a vida de adultos e crianças em todo o mundo. A execução de cenários hipotéticos utilizando o DTE Hydrology também pode auxiliar os cientistas a compreender melhor as complexidades do ciclo da água da Terra, permitindo que os países europeus equilibrem seu uso da água entre várias necessidades, incluindo comunidades, indústrias e explorações agrícolas. A água é o recurso mais precioso do nosso planeta — os seres vivos não podem existir sem ela. Com o DTE Hydrology, pretendemos proteger a vida na Terra: alertando os seres humanos sobre eventos perigosos relacionados com a água e cuidando dos recursos hídricos do nosso planeta para as gerações futuras.
Enchente relâmpago: enchentes que sobem rapidamente em uma área específica e geralmente acontecem pouco tempo após chuvas fortes!
Ciclo da água: conjunto dos complexos processos pelos quais a água da Terra é “reciclada” à medida que se transforma em diferentes estados (líquido, sólido e gasoso). Os processos do ciclo da água incluem precipitação, evaporação e condensação.
Precipitação: água que cai das nuvens em forma de chuva, neve ou granizo.
Umidade do solo: quantidade de água contida no solo. Quanto maior a umidade da superfície terrestre, mais saturada ela está e menos precipitação consegue absorver.
Escoamento: água que não penetra no solo e, em vez disso, flui da terra para rios e córregos, aumentando os nível desses cursos de água .
Modelo de computador: qualquer representação produzida em um computador de uma situação ou sistema complexo.
Gêmeos digitais: representação computadorizada de um sistema ou processo da vida construída para corresponder à situação real de maneira suficientemente precisa para permitir que os usuários investiguem e façam perguntas do tipo “e se”.
Resolução: nível de detalhamento de uma medição em termos de quão “ampliadas” são as medições e com que frequência são feitas ao longo do tempo.
O autor declara que a pesquisa foi realizada na ausência de quaisquer relações comerciais ou financeiras que pudessem ser interpretadas como potencial conflito de interesses.
Coautoria de Susan Debad Ph.D., formada pela University of Massachusetts Graduate School of Biomedical Sciences (USA), escritora e editora de ciências na SJD Consulting, LLC. Silvia Barbetta, Stefania Camici, Luca Ciabatta, Jacopo Dari, Paolo Filippucci, Christian Massari, Sara Modanesi, Angelica Tarpanelli, Bianca Bonaccorsi, Hamidreza Mosaffa, Wolfgang Wagner, Mariette Vreugdenhil, Raphael Quast, Lorenzo Alfieri, Simone Gabellani, Francesco Avanzi, Dominik Rains, Diego G. Miralles, Simone Mantovani, Christian Briese, Alessio Domeneghetti, Alexander Jacob, Mariapina Castelli, Gustau Camps-Valls, Espen Volden, e Diego Fernandez foram coautores do manuscrito original.
Brocca, L., Barbetta, S., Camici, S., Ciabatta, L., Dari, J., Filippucci, P., et al. 2024. A digital twin of the terrestrial water cycle: a glimpse into the future through high-resolution Earth observations. Front. Sci. 1:1190191. doi: 10.3389/fsci.2023.1190191.
[1] Filippucci, P., Brocca, L., Quast, R., Ciabatta, L., Saltalippi, C., Wagner, W. et al. 2022. High resolution (1 km) satellite rainfall estimation from SM2RAIN applied to Sentinel-1: Po River Basin as case study. Hydrol. Earth Syst. Sci. 26:2481–97. doi: 10.5194/hess-26-2481-2022.
[2] Peng, J., Albergel, C., Balenzano, A., Brocca, L., Cartus, O., Cosh, M. et al. 2021. A roadmap for high-resolution satellite soil moisture applications – confronting product characteristics with user requirements. Remote Sens. Environ. 252:112162. doi: 10.1016/j.rse.2020.112162.
[3] Alfieri, L., Avanzi, F., Delogu, F., Gabellani, S., Bruno, G., Campo, L. et al. 2022. High resolution satellite products improve hydrological modeling in northern Italy. Hydrol. Earth Syst. Sci. 26:3921–39. doi: 10.5194/hess-26-3921-2022.
Brocca L (2024) Playing the water cycle “game”: data from space for a safer planet. Front. Young Minds. 12:1201606. doi: 10.3389/frym.2023.1201606.
Anna Regoutz
Karen Holmberg e Janifer Raj Xavier
Enviado: 6 de abril de 2023; aceito: 6 de outubro de 2023; publicado on-line: 5 de março de 2024.
Copyright © 2024 Brocca
Luca Brocca
Tenho 44 anos, uma família fantástica e quatro filhos, de 9 a 17 anos, que são legais e, às vezes, terríveis. Minha esposa é ótima em gestão familiar. Adoro esportes, especialmente o aspecto competitivo. Eu jogo padel e participo de torneios — ganhei alguns este ano! Também gosto de correr, jogar vôlei de praia e fazer caminhadas nas montanhas. No inverno, curto esquiar, e, no verão, não gosto de ir à praia! Ah, e eu também tenho um emprego. Sou diretor de pesquisa do National Research Council, Research Institute for Geo-Hydrological Protection (CNR-Irpi), em Perúgia. Escrevi muitos artigos para periódicos (mais de 190), talvez um pouco demais, e fui o revisor de mais de 80 anais de conferências e capítulos de livros. Lidero e participo de vários projetos de estudo nacionais e internacionais com muitos colegas ao redor do mundo. Coordeno um grupo de pesquisa fantástico em Perúgia — atualmente, são 22 pessoas, de diferentes nacionalidades, incluindo iranianas, indianas, chinesas, francesas… Amo meu trabalho, amo ciência e amo tentar descobrir novidades. A pesquisa é como o esporte: é uma competição e, quando você perde, fica com raiva, mas também fica feliz em saber que ainda é possível melhorar! *luca.brocca@irpi.cnr.it
Kavin – 14 anos
Meu nome é Kavin e estou na 9ª série do ensino fundamental. Gosto de piano, carros, debates, ler livros de história e arte. Também estou interessado em salvar o meio ambiente com a construção de carros eficientes, em vez de mudarmos completamente para carros eléctricos. Jogo tênis, basquete e badminton. Também gosto de jogar videogame e codificar vários programas de computador usando Java. Minhas matérias favoritas na escola são matemática e química.
Momo – 11anos
Momo adora viajar pelo mundo e conhecer novos lugares. Mesmo assim, ela se autoproclama uma fanática por televisão quando está em casa. Os dois extremos podem coexistir numa só pessoa! A companheira de sofá favorita de Momo é a cadela peluda e carinhosa Lita.
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Texto traduzido do site https://kids.frontiersin.org.
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