Por Patricia Auerbach

Como autora e ilustradora, acho que as pessoas devem ter acesso a todo tipo de produção cultural. Isso quer dizer que, na minha opinião, nenhum livro, filme ou exposição deveria ser proibido para ninguém.

Personagem Emília, de O sítio do Picapau Amarelo

Mas o que fazer se uma história é ofensiva para um grupo de pessoas? É certo um autor publicar uma obra que magoa alguém, mesmo que não tenha nenhuma intenção de fazer isso? Talvez não. Mas é justo ele não poder escrever uma história porque outras pessoas não concordam com a atitude do personagem ou do narrador?

A liberdade de um termina onde começa a do outro, então, se um autor tem direito de escrever o que bem entende, um leitor também deve ter direito de não gostar, certo? O problema é que quando não gostam ou não concordam com o leram, alguns leitores acreditam que a obra deve ser proibida e assim nasce um impasse difícil.

É muito comum confundir a opinião e a atitude dos personagens com a opinião e a atitude do próprio autor, mas uma coisa não tem necessariamente a ver com a outra. A literatura é cheia de seres desagradáveis, incorretos e maus, e isso não quer dizer que seus autores sejam vilões. Os personagens inventados nos fazem pensar e assim nos ajudam a entender o mundo e a não repetir na vida real os erros que eles cometem no faz-de-conta.

Há algumas décadas, professores batiam com uma régua de madeira nas mãos de alunos desobedientes, era a chamada palmatória. Meu bisavô contava que durante a sua infância as crianças que iam mal na prova eram chamadas de burras e expostas no portão da escola usando orelhas gigantes para reforçar sua incompetência.

Naquele tempo, acreditava-se que o medo de apanhar e a vergonha de ser visto usando orelhas de burro eram os métodos mais eficientes para estimular os alunos a cumprir suas obrigações na escola. Essas histórias hoje parecem absurdas: bater em um aluno que esquece a lição é cruel e inaceitável.

O mundo mudou, e não foi só na escola

Quando Monteiro Lobato criou as aventuras do Sítio do Picapau Amarelo, o fim da escravidão era muito recente e os negros no Brasil ainda eram vistos como escravos recém-libertos. Isso não justifica, mas contextualiza a maneira grosseira e preconceituosa como alguns personagens se referem à tia Nastácia, tratando-a por “macaca beiçuda” e “negra de estimação”, mesmo sendo ela uma personagem admirada e sabida.

Embora hoje pareça absurdo, esse tipo de comportamento era considerado normal na primeira metade do século 20, prova disso é que durante décadas gerações inteiras de crianças e adultos se deliciaram com as histórias de Emília e sua turma sem que o conteúdo racista das obras tivesse lhes chamado a atenção.

O mundo mudou, o que fazer agora?

Tirar as obras Monteiro Lobato das livrarias e escolas? Acabar com os livros? Impedir que sejam lidos? O sítio do Picapau Amarelo fez parte da minha infância, mas quando há alguns anos li Caçadas de Pedrinho para os meus filhos pequenos precisei parar algumas vezes diante de uma ou outra frase, porque não conseguia dizê-las da forma como estavam escritas no livro. Era tão absurdo ver Emília falando daquele jeito!

Tia Nastácia

Eu mudava o texto enquanto lia, tentando eliminar o tratamento racista dado à querida tia Nastácia. Mas percebi que fazendo isso eu estava apagando da história uma verdade cruel que meus filhos precisavam conhecer.

Depois de alguns capítulos, interrompi a leitura em uma frase preconceituosa e expliquei a eles com toda a clareza o que estava acontecendo. Falei da escravidão, da crueldade com que os negros eram tratados, das injustiças que sofrem ainda hoje e como tudo isso tinha deixado marcas profundas na sociedade.

Dali em diante, pelos comentários que fizeram, percebi que tinham entendido a gravidade daquelas referências à tia Nastácia. Seguimos então a leitura, parando várias vezes para que pudéssemos falar sobre o assunto.

Por tudo isso, continuo achando que nenhum livro ou obra de arte deve ser proibido, mas alguns talvez precisem de mediação e conversa. Acredito que a presença dos erros e o registro de vergonhas históricas, como a escravidão, são uma excelente maneira de provocar o debate necessário sobre temas tão importantes.

Apesar de estarmos ainda muito longe do ideal, caminhamos para um mundo em que as pessoas sejam respeitadas e valorizadas, independentemente da cor da sua pele, da sua orientação sexual, religião ou condição financeira. As histórias dos livros e filmes, as obras de arte e peças de teatro, são importantes nesse processo. Seus personagens, ainda que cruéis e politicamente incorretos, nos ajudam a olhar o mundo pelo olhar do outro.

Substituímos a palmatória pela conversa, a orelha de burro pelas aulas de reforço, mas mesmo com toda a mudança de comportamento não podemos substituir personagens queridos. Eles precisam seguir vivos, para que possamos desfrutar suas aventuras e aprender com seus erros.

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