#pracegover: capa do livro O Diário de Nisha, de Veera Hiranandani. Crédito: Divulgação
O livro O Diário de Nisha e sua autora, Veera Hiranandani. Arte: Beatriz Lopes
O livro O Diário de Nisha e a autora, Veera Hiranandani. Arte: Beatriz Lopes

Era 1947 quando, entre os dias 14 e 15 de agosto, a Índia se tornou independente do Reino Unido, que administrava a região desde 1858. A independência resultou em um processo chamado partição, que dividiu o território em dois países: a Índia (para onde foram os hindus) e o Paquistão (destino dos muçulmanos). Agora, imagine viver em 1947, ter 12 anos, ser de uma família hindu e morar no lado que se tornou o Paquistão. Essa é a história narrada pela personagem que dá nome ao livro O Diário de Nisha (Editora DarkSide).

Enquanto escreve para a própria mãe — morta no nascimento de Nisha e de seu irmão gêmeo — em um diário, a garota relata todas as mudanças que surgem com os acontecimentos na Índia. Por seguir o hinduísmo e morar na região que se tornou o Paquistão, a família de Nisha precisa se mudar para o território onde os hindus viverão dali para a frente.

A autora, Veera Hiranandani, nasceu nos Estados Unidos, mas se inspirou na própria família para criar o livro: seu pai, tios e avós tiveram que atravessar a fronteira entre as duas novas nações na época da partição, assim como Nisha e seus familiares precisam fazer.

Para a personagem, os questionamentos sobre a situação na Índia ainda vão além: o que aconteceria se a mãe de Nisha, que era muçulmana, estivesse viva? Ela teria que ficar para trás por não poder morar em uma área destinada a pessoas de outra religião?

A travessia que a menina de 12 anos faz na ficção levou, na vida real, mais de 14 milhões de pessoas a atravessar a fronteira entre Índia e Paquistão — ao menos um milhão delas morreram durante confrontos nesse processo.

A seguir, confira uma entrevista com a autora de Diário de Nisha, Veera Hiranandani:

O quanto de você existe na personagem Nisha?
Eu costumo colocar muito de mim mesma em meus personagens. Em relação à Nisha, eu também era uma observadora tímida e quieta, mas não era tão difícil para mim quanto é para Nisha no livro. Além disso, a identidade inter-religiosa [na história, a mãe da personagem era muçulmana e o pai, hindu] de Nisha reflete a minha de algumas maneiras. Eu cresci com um pai hindu e uma mãe judia e, às vezes, sentia-me confusa sobre minha identidade. Porém, a situação é bem mais urgente para Nisha.

Você teve um diário quando era criança, como Nisha tem no livro?
Eu tive um diário. Na verdade, tive vários. Mas eu não era tão observadora e coerente como Nisha é no livro. Eu acredito que um diário pode ser um espaço livre para os jovens, em que eles se expressem sem o julgamento dos outros, para fazer as perguntas que temos medo de fazer. É por isso que eu amava escrever em um diário conforme crescia e queria que Nisha tivesse uma conexão parecida com essa.

A história de Nisha e da família dela é baseada na história da sua própria família. De que forma os relatos dos conflitos e os momentos difíceis vividos por seus pais e avós chegaram até você? Este era um assunto comum na sua casa?
Sim, meu pai tinha 9 anos quando teve que deixar sua casa na partição, em 1947. Eu ouvi ele e meus tios e tias contarem essa história em diferentes momentos enquanto crescia, aquelas várias semanas depois de a Índia se tornar independente do Reino Unido e se dividir em dois países, Paquistão e Índia. Meu pai, seus quatro irmãos e irmãs e a mãe deles embarcaram em um trem no Paquistão e cruzaram a nova fronteira. Meu avô teve que ficar para trás. Ele era médico no hospital da cidade, e não queriam que ele fosse embora até que encontrassem um substituto. Mas ele decidiu ir embora de qualquer maneira porque estava preocupado com sua família. Eles perderam a casa em que moravam, a comunidade em que viviam, mas fizeram a mudança de forma segura. Muita gente não conseguiu. Quando eu fiquei mais velha, tornei-me mais curiosa, fiz mais perguntas e comecei a me questionar por que nunca tinha aprendido sobre a partição na escola – um evento na história global que deslocou 14 milhões de pessoas. Também é estimado que entre 1 milhão e 2 milhões de pessoas morreram. Quando me tornei escritora, sabia que queria moldar uma história ao redor da partição, mas levou muito tempo até eu me sentir confiante o bastante para fazer isso.

Como foi crescer em uma família em que duas culturas se encontraram, com sua mãe norte-americana e seu pai de origem indiana?
Ser inter-religiosa e birracial [ter identidade relacionada a duas raças] é confuso em alguns momentos. Com frequência, eu não me sentia suficientemente indiana ou hindu ao lado do meu pai ou judia o bastante ao lado da minha mãe. Mas, finalmente, isso se tornou uma jornada rica e complexa. Penso nisso como um presente. Agora, eu escrevo para aqueles que estão navegando em múltiplas religiões ou identidades raciais e também para qualquer pessoa que sinta que sua identidade é confusa para os outros – ou não válida o bastante para as identidades ao redor. Eu ainda luto com minha própria identidade, mas sinto que isso me dá a habilidade de entender e ser empática com muitos tipos diferentes de pessoas. E gosto disso.

Na sua opinião, por que é importante que crianças e jovens pelo mundo tenham conhecimento, atualmente, sobre os acontecimentos que envolveram a partição da Índia?
Entre as muitas razões para eu ter escrito o livro está contribuir com a preservação da história da partição. Meu pai tem 80 anos, e quem se lembra do fato com clareza está mais velho ou já morreu. Eu acredito que os filhos dos sobreviventes da partição têm a responsabilidade de transmitir essas histórias e lições aprendidas para as futuras gerações. Isso também se aplica a muitas outras coisas que estão acontecendo agora no mundo. Essa é a única forma que temos de honrar aqueles que sofreram e perderam a vida.

Que conselho você daria para crianças e jovens que, neste momento, vivem em regiões de conflito, como Nisha relata em seu diário?
Eu não sei se estou em posição de dar conselho para crianças que vivem em áreas de conflito. Eu só conheço a história que criei. Não vivi esse tipo de conflito pessoalmente. Provavelmente, essas crianças é que poderiam me dar conselhos. Eu me sinto devastada pelo sofrimento de crianças ao redor do planeta. Minha esperança é de que o livro possa ajudar a explicar o estrago que esses conflitos podem causar, especialmente nas crianças, que são tão vulneráveis às decisões tomadas pelos adultos. Espero por um futuro mais pacífico e gostaria que meu livro fizesse parte dessa força.

Paquistão
Habitantes: 197 milhões de pessoas
Área: 881.913 km2
Idiomas: a língua nacional é o urdu, além de inglês e centenas de dialetos

Índia
Habitantes: 1,3 bilhão de pessoas
Área: 3.287.000 km2
Idiomas: principalmente o hindi, além de inglês e centenas de dialetos

Glossário
Hindu:
nome dado aos seguidores do hinduísmo, religião que predomina no atual território da Índia. Estima-se que exista cerca de um bilhão* de hindus no mundo.

Muçulmano: denominação dada aos seguidores do islã, religião predominante no atual território do Paquistão. Estima- se que exista cerca de 1,8 bilhão* de muçulmanos no mundo.

Fonte: Pew Research Center.

*Esta matéria foi publicada em versão reduzida na edição 136 do jornal Joca.

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