Para a jornalista Cynthia Martins, levar informação para as pessoas é uma maneira de mudar o mundo. Crédito de imagem: arquivo pessoal

Ela é jornalista na Rede Bandeirantes, atualmente apresenta o Jornal da Noite e o Jornal da Band, além de comandar o podcast Pretoteca, em que aborda questões de desigualdade racial e entrevista personalidades. Estamos falando de Cynthia Martins, que conversou com Juan F., 10 anos, sobre sua carreira e a importância da educação antirracista.

O que te levou a ser jornalista? Você sonhava em ser desde criança?

Quando criança, nós geralmente pensamos nas profissões com que convivemos, tipo, professora, né? Eu admirava algumas professoras, então queria ser uma. E minha geração foi muito criada pela televisão, então, às vezes, tinha um personagem [de TV] que era um bombeiro, e aí [eu falava]: “Ah, quero ser bombeiro”. Conforme fui crescendo, fui tendo contato com outras coisas. E aí eu escolhi o jornalismo porque sempre achei que era um caminho para a gente conseguir mudar as coisas, sabe? Pensando de uma forma um pouco gigantesca, um desejo de mudar o mundo. Claro que não dá para sair mudando o mundo de uma vez, mas eu acho que levar a informação para as pessoas é uma maneira de fazer isso.

Eu li um pouco sobre você e percebi que você não gosta de matemática. Por quê?

Menino, eu sempre tive muita dificuldade com números no geral. Hoje a gente tem algumas mudanças na educação que fazem com que, se alguém tem uma aptidão maior para aulas de áreas de humanas [como história, música e português], tenha um ensino mais direcionado. Claro que a matemática é necessária para o nosso dia a dia, a gente precisa fazer conta para lidar com as finanças da casa, por exemplo. Então, o básico eu consigo lidar, mas o meu cérebro realmente não tem uma aptidão tão grande para números. Desde muito criança, eu sempre fui melhor nas disciplinas de português, como gramática, literatura e redação. Então, acho que é uma aptidão mesmo de mim, Cynthia. Eu admiro muito quem tem essa facilidade de lidar com números.

Como foi a sua primeira experiência diante de uma câmera? Você ficou tímida?

Olha, a gente fica um pouco, né? Eu comecei a faculdade em 2003 e, desde o primeiro ano, eu já comecei a fazer estágio na própria TV da faculdade. Então tudo era muita novidade. Se eu vejo vídeos daquela época, percebo que estava um pouco nervosa, mais travada e tensa. Mas, com o tempo, a gente vai aprendendo que a câmera é como se fosse uma pessoa do outro lado. Então esse nervosismo vai passando, porque você naturaliza a câmera, como se fosse apenas alguém que está por perto.

Juan F., 10 anos. Crédito de imagem: arquivo pessoal

Das matérias que você já publicou, de qual gostou mais?

Nossa, tem tanta coisa que a gente faz. Deixa eu pensar…

Olha, foi muito especial ter feito a cobertura da Copa do Mundo de 2014, que foi aqui no Brasil, e da Olimpíada de 2016, também aqui. Mas pensando em reportagens, teve uma vez que eu fui para o Uruguai, talvez em 2015 ou 2016, e aí a gente conseguiu fazer uma reportagem com um grupo de uruguaios que, nos anos 1970, era um time de rúgbi. Na época, eles sofreram um acidente de avião, ficaram muitos dias presos no meio da neve, as pessoas achando que não estavam mais aqui. Essa história virou filme, é muito famosa em todo o mundo. E eu consegui estar no Uruguai justamente na data que eles se reuniram para fazer um encontro com as famílias de todos os sobreviventes. Então eu estive na reunião com eles, pude conhecer o dia a dia profissional de alguns; um deles é cardiologista de criança, inclusive.

Muito legal! E de onde veio a ideia do podcast Pretoteca?

O podcast Pretoteca foi a criação de um jornalista que hoje está na Globo, o Luiz Teixeira. Ele trabalhou bastante tempo na Band e inaugurou esse podcast em 2020. E aí, depois que ele saiu da Band, a Rádio BandNews FM, detentora do podcast, convidou-me para assumi-lo.

O podcast tem esse direcionamento de falar com as pessoas negras, mas também com as brancas, sobre esse assunto [de lutas antirracistas]. Eu tenho muito orgulho de fazer parte e ter essa responsabilidade de falar não só com adultos, como com crianças também. A gente fala de livros infantis, maternidade, paternidade e outras questões mais sérias também. E nós entrevistamos pessoas negras reconhecidas nesse universo. A gente conseguiu, por exemplo, gravar com a dona Léa Garcia, que infelizmente nos deixou há pouco tempo. Então é um meio de exaltar pessoas negras da nossa sociedade e discutir também essas questões.

Léa Garcia (1933 – 2023): atriz brasileira reconhecida internacionalmente. Foi indicada ao prêmio de melhor interpretação feminina no Festival de Cannes pela atuação em Orfeu Negro (1959), vencedor do Oscar, em 1960, como melhor filme estrangeiro.

Muito importante mesmo. E qual foi o episódio que mais te marcou?

Eu citei a Léa Garcia justamente porque o dela foi um dos que mais me marcaram. Ela tinha acabado de completar 90 anos, fazia aniversário no mesmo dia que eu. O trabalho dela era bonito demais. Eu tinha acabado de assistir a Orfeu Negro, pelo qual ela concorreu a um dos prêmios mais importantes do cinema mundial, no Festival de Cannes. E, naquela época, uma mulher negra concorrer a um prêmio desse foi gigantesco! Como eu cresci vendo essa mulher na televisão, com meus avós falando dela, ter tido essa conversa foi muito marcante. Ela mandou depois mensagens agradecendo a conversa, e eu até chorei, sabe? E chorei no episódio também. Porque acho que ter esse encontro com ela foi uma maneira de me encontrar como se fosse com uma pessoa da família, eu me senti abraçada, próxima, me senti conectada com alguém que vi entrar na minha casa a vida inteira pela televisão.

Você já sofreu racismo?

Sim. A gente sofre quase diariamente. Antigamente se pensava, não declaradamente, que o racista era aquela pessoa que falava: “Ah, eu não gosto de você, porque você é preto”. Só que não dá para resumir apenas a isso. O racismo é algo muito sério que está dentro da sociedade, do nosso dia a dia, a partir do momento em que nós somos maioria da população e não estamos inseridos onde deveríamos estar. Eu, por exemplo, ainda sou a única apresentadora preta de rede nacional aberta na Band. A gente ainda não tem repórteres pretos na empresa. E isso não é só nesse veículo que eu trabalho. Por trás das redações, a gente tem as cabeças que pensam, as chefias, que, na maioria, são pessoas brancas.

E eu não falo só do jornalismo. A gente vê o próprio Brasil, a gente nunca teve um presidente preto, sendo que nós somos maioria (…). Não ter a nossa presença nos espaços importantes de pensamento e poder da sociedade é uma forma de racismo.

Eu já ouvi, por exemplo, de algumas pessoas que cuidam do visual na televisão, não da Band, que: “Nossa, o seu cabelo está dando muito volume no vídeo”. Só que o meu cabelo cresce para cima, o nosso cabelo é assim, e a televisão estava acostumada há muitos anos a ver pessoas com cabelo para baixo, pessoas com cabelo liso, brancas, loiras. Esses tipos de comentários também são um modo de racismo.

É mesmo… E você acha que a mulher negra sofre mais do que o homem negro?

Eu não sei se mais, mas se a gente for pensar nas pesquisas, nos números, nas estatísticas, cada um sofre muito dentro do seu recorte de gênero. A mulher é mais vítima de violência na sociedade; ela é a que mais trabalha, que geralmente costuma sustentar a casa da família. Em empresas, às vezes uma chefe preta é a única chefe preta da companhia, e ela tem dificuldade para ser ouvida. Ela precisa, muitas vezes, que um homem que nem está no mesmo cargo que ela valide a ordem que ela acabou de dar.

E aí, se ela tem uma maneira mais vigorosa de falar, dizem para ela que está muito nervosa, estressada, ou na TPM [Tensão Pré-Menstrual, grupo de sintomas que ocorre com a mulher no ciclo menstrual, como alterações de humor e dores]. As mulheres sofrem essas violências o tempo inteiro e, quando são negras, essa violência é muito maior. Em relação aos homens, eles são, geralmente, as principais vítimas de violência policial; andam na rua com medo de ser parados pela polícia. Podem ser vítimas, principalmente nas periferias do Brasil, de bala perdida. No geral, a gente tem descoberto que tem coisas maravilhosas em ser negro: a nossa beleza, alegria, autoestima, os nossos cabelos.

Mas em uma sociedade que ainda é bastante racista, pode ser doloroso também.

Qual conselho você daria para mim, que sou moreno, para ficar de cabeça erguida se eu sofrer racismo?

Pois é, eu tenho aprendido que é importante mostrar para pessoas como você, que estão começando a vida agora, que a nossa trajetória enquanto pessoas pretas não começou pela dor. A gente sabe que tivemos a escravidão, um passado muito doloroso para os nossos bisavós e tataravós. Mas eu acho importante que você busque, por exemplo, histórias e livros infantis que mostrem a riqueza do povo preto. A gente descende de pessoas da África que eram reis e rainhas, então a gente tem muita coisa bonita para mostrar. Eu aconselho você a se educar assim desde cedo; aproveitar a educação que você tem para sempre poder se informar e lembrar que você é gigante e pode ser o que quiser: seja um jornalista, seja outro profissional. A educação me salvou, espero que salve as pessoas que vêm depois. Eu vejo que você é um menino comprometido e que também tem a educação como um caminho importante. Tem dia que vai ser difícil, mas você dá a mão para quem está do seu lado, conversa com alguém em quem confia, pega ajuda nos livros, sempre de cabeça erguida, porque o Juan e a Cynthia juntos podem muito mais.

Qual o seu recado final para todas as crianças negras do Brasil?

Que vocês são os nossos sonhos, sabe? O fato de vocês existirem é a realização do meu sonho e de quem veio antes. Essas pessoas passaram por muitas dificuldades para que a gente chegasse hoje com uma geração tão linda como a de vocês. Linda mesmo, você é lindo. E vocês estão muito mais preparados, sabe? Até mesmo na autoestima com os cabelos, que era uma coisa que eu não conseguia ter. Tive meu cabelo por muito tempo alisado para esconder essa beleza da negritude, é algo que a geração de vocês já tem. A minha sobrinha, por exemplo, tem um cabelão maior do que o meu e, como ela é pequena ainda, às vezes não quer pentear, e aí a mãe ameaça: “Vou alisar o seu cabelo”, e ela responde: “Não, não, tá bom, eu vou pentear”. Então eu digo para todas as crianças negras que se unam e não esqueçam de onde vêm, que podem ser o que quiserem e que ser preto é lindo demais. 

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