Crédito de imagem: Wagner Meier/Getty Images

Está é a nova coluna do Joca. Crônica é um gênero textual curto escrito em prosa e publicado em jornais, revistas e livros. O texto comenta sobre o cotidiano e pode ser ficcional.

Minha filha disse que eu não conseguiria ficar acordada a madrugada inteira até o sol raiar. Mas como ter sono diante das escolas de samba atravessando a Marquês de Sapucaí?

Aguentei firme naquela noite de domingo: primeiro vi a Unidos de Padre Miguel, depois a Imperatriz Leopoldinense, passei a meia-noite com a entrada da Viradouro e a farra terminou com a Mangueira. Na verdade, não terminou, porque a bagunça só mudou de funcionamento: eram quatro horas da manhã quando a avenida foi aberta para a plateia ocupá-la com som e dança em um imenso desfile atrás do samba.

Embora a plateia estivesse concentrada na passagem de carros alegóricos, passistas e comissões de frente, o cinema roubou a atenção do público. Era hora do Oscar, e o Brasil concorria em três categorias! Não só eu, e sim tanta gente ao meu lado acompanhava pelo celular os vencedores, procurando sem parar as atualizações de sites de notícia. Pouco antes da meia-noite, começou o burburinho: “A gente ganhou? A gente ganhou? A gente ganhou!”. De toda parte, uma gritaria vibrou a vitória inédita para o país com o filme Ainda Estou Aqui como melhor produção internacional. “Fernanda, Fernanda, Fernanda!”, continuou a arquibancada, em homenagem à Fernanda Torres, atriz protagonista do filme.

Em seguida, as atenções se voltaram novamente para a avenida. Eu era apenas mais uma pessoa fantasiada entre as quase 80 mil que lotaram a primeira das três noites do desfile das 12 escolas de samba do grupo especial carioca. Caprichei: pintei um coração vermelho no rosto, coloquei algum brilho no olho, brincos compridos de bolas prateadas e confete no cabelo (além de uma garrafinha de água na mão).

E você acredita que, mesmo na muvuca, é tudo organizado? Do metrô até a Sapucaí foram uns dez minutos de caminhada com tranquilidade e mais uns cinco minutinhos na fila para entrar. Lá dentro, fui me apertando em um cantinho e fazendo amizade com os vizinhos das próximas seis horas. Na hora do xixi, os banheiros estavam limpos e não tão cheios.

Quando uma escola passa na avenida, lá longe e bem embaixo, a visão é de um grupão harmônico, todo juntinho e colorido. Mas quando as rainhas de bateria e as alas de mestre-sala e porta-bandeira chegam mais perto para dançar, parecem olhar fundo nos nossos olhos e agitam a plateia.

Não dá para dizer que assistir ao desfile é um esquema fácil e confortável, mas o clima entre as pessoas é muito animado e harmonioso. Vi de tudo: a família de Brasília que, assim como eu, tem pouco contato com escolas de samba no restante do ano e também um casal que conhecia todos os sambas-enredo e acompanhava cantando com vontade. Teve também a mocinha com camiseta da Mangueira e que, quando sua escola do coração entrou, disse: “Tô muito nervosa, acho que caiu minha pressão”, ameaçando um choro desesperado, mas, no segundo seguinte, começou a sambar e cantar emocionada a música que sabia de cor: “Sou a voz do gueto, dona das multidões/ Matriarca das paixões, Mangueira/ O povo banto que floresce nas vielas/ Orgulho de ser favela”.

Foi uma linda noite. A Unidos de Padre Miguel pela primeira vez em 50 anos esteve entre as escolas de samba do grupo especial. A Imperatriz Leopoldinense e a Viradouro, cada uma à sua maneira, falaram da resistência do povo negro e de religiosidade e empataram na minha preferência. Mas a Mangueira, preciso confessar, conquistou meu coração. Volto para casa com a bandeirinha verde e rosa que ganhei e vou deixá-la pendurada para balançar no vento e me fazer lembrar da noitada quente e animada.

Mando um WhatsApp orgulhoso para minha filha: “Já clareou, deu certo acompanhar o desfile o tempo todo!”. Ufa, é hora de guardar na memória o som vibrante da bateria, mas, por favor, quero dormir.

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