Daniel-Munduruku-nova
Maria Flor G. e Daniel Munduruku/ #pracegover: Maria Flor G. e Daniel Munduruku posam para foto. Ela está segurando um livro nas mãos. Crédito de imagem: Stéphanie Habrich

Foi a pergunta de uma criança que levou Daniel Munduruku, 55 anos, a colocar no papel as histórias de sua aldeia indígena. Hoje, com 23 anos de carreira, ele já tem 52 livros publicados, a maioria infantojuvenis.

A repórter mirim Maria Flor G., 9 anos, entrevistou o escritor sobre as obras, a infância e a vida na cidade e na aldeia. O papo ocorreu durante o encontro nacional de escolas associadas da Organização das Nações Unidas Para a Educação, a Ciência e a Cultura (Rede PEA-Unesco), realizado em setembro, em Ouro Preto (Minas Gerais).

Na conversa, Daniel contou ter sofrido bullying em uma escola de fora da aldeia por ser diferente das crianças que estudavam ali. Formado em filosofia e educação, ele fala sobre a importância e a diversidade dos povos indígenas em livros, palestras e aulas. Confira.

Quando você começou a escrever histórias?
Publiquei meu primeiro livro em 1996. Antes de escrever, eu já contava histórias. Um dia, uma criança perguntou onde podia ler essas histórias. Eu não soube responder, porque o que eu contava, tinha ouvido quando era criança, lá na aldeia, e não sabia se elas tinham sido registradas. Descobri que não, então veio a ideia de escrever. Comecei a fazer isso, mas não virei escritor imediatamente, porque escrever é uma coisa que a gente vai aprendendo, ninguém nasce escritor. Eu fui me tornando e acho que hoje já sou.

Qual é o seu principal objetivo com os livros?
“Desentortar” o pensamento das pessoas. Eu tenho a impressão de que nessa idade [público infantojuvenil] as pessoas não entendem muito bem a vida indígena, por isso, pensam de forma preconceituosa, às vezes. A minha ideia, ao escrever, é apresentar outra história e, com ela, fazer as crianças pensarem direito e bem sobre povos indígenas.

Como foi a sua infância?
A lembrança que eu tenho da minha infância no meio da floresta é muito feliz. Até meus 9 anos, vivi na aldeia. Eu corria, brincava, nadava no rio, atirava com arco e flecha… Isso acabou quando fui para a escola. Também no colégio comecei a sentir os primeiros preconceitos das pessoas contra a minha beleza. Elas ficavam achando que eu era feio, mas eu sempre me achei bonito e tive orgulho de ser quem eu era. Quando fui para a cidade — porque a escola ficava lá — o colégio dizia que ter nascido na aldeia era algo ruim, que eu era atrasado e selvagem. Isso acabou me deixando muito triste.

Hoje, se você tivesse que sair da cidade e voltar a viver na aldeia, qual seria a sua reação?
Acho que eu seria do mesmo jeito. É claro que, como tenho acesso a muitas coisas na cidade, elas me fariam falta na aldeia. Mas, com o tempo, eu iria aprender a viver sem tudo isso. Embora toda essa tecnologia, ou parte dela, já esteja nas nossas aldeias. Nossos grupos já estão bem próximos da cidade e da vida urbana e eles usam tecnologia. O sinal de celular e a internet chegam a muitas aldeias, mas não a todas.

Seu nome é mesmo Munduruku? Qual é o significado?
Munduruku é o nome do meu povo, significa “formigas vermelhas”, porque o povo munduruku é um povo muito guerreiro, assim como as formigas. Se você mexe com uma formiga, ela não te causa nenhum problema, mas se mexer com o formigueiro, ele mata uma pessoa. O mesmo acontece com os munduruku: se mexer com o povo inteiro, ele cria uma força muito grande. Então, a gente acaba usando o nome do nosso povo como nosso nome. Munduruku não é meu nome oficial, que aparece na minha identidade. É um nome “artístico”, que eu uso para saberem de onde sou. Eu não sou Daniel, o indígena, sou Daniel, o munduruku — assim, eu tenho uma origem, pertenço a um povo.

Qual é o principal ensinamento que os indígenas da sua família deixaram para você?
Uma das coisas que eu trago sempre comigo, que é do meu avô, é viver o momento e não querer estar em outro lugar. Esse grande ensinamento me ajuda a não ser vaidoso nem achando que sou um cara conhecido, porque me dá um sentimento de pertencimento. Eu pertenço a um povo, então o que eu faço não é por mim, é pelo meu povo inteiro. Eu não sou famoso, é meu povo que está ficando famoso. Isso permite que eu trabalhe sem achar que tudo isso é porque eu sou o melhor cara, o melhor escritor… O mais bonito eu sou mesmo (risos). Por que achar que somos grande coisa se todos nós vamos passar? Temos que viver o presente em um exercício de ser feliz a cada dia.

Existem muitas diferenças entre a infância de uma criança indígena e a infância de uma criança não indígena? Quais?
Não muitas, criança é criança em todo lugar. Toda criança gosta de brincar, de correr, só muda um pouco as condições para que essa vontade aconteça. Se eu estou lá no meio da floresta, brincar e correr pode ser uma coisa muito fácil, mas se estou na cidade, brincar e correr pode ser uma coisa muito perigosa, muito difícil. Além disso, outra diferença é que a cidade oferece muita luz, muito brilho, então as crianças ficam um pouco perdidas e elas acabam indo em busca do brilho das coisas: elas querem ver televisão, querem jogar no tablet… isso acaba tirando a criatividade delas. A nossa criatividade é dada na medida em que você está circulando, olhando todas as coisas. Quando a gente olha só para uma coisa, a gente fica meio limitado, porque dá impressão de que a internet oferece um mundo inteiro, mas ficamos presos à tela, não estamos em liberdade olhando para o mundo. A liberdade é a capacidade de poder olhar para todos os lados, examinar as coisas e interagir com elas.

Você ainda visita a sua aldeia? Se sim, com qual frequência?
A aldeia em que eu cresci não existe mais, ela já voltou a ser floresta. O povo munduruku muda muito de lugar. Quando eu era criança, a gente ainda mudava mais de lugar, mas hoje as aldeias já são feitas de alvenaria, de cimento, então não dá mais para mudar muito. Antigamente as casas eram feitas de palha, então depois de um tempo a gente abandonava e ia para outro canto, fazia outra aldeia em outro lugar.
Eu retorno, não vou mais com tanta frequência como eu ia antes, mas pelo menos uma vez por ano eu vou. Às vezes não dá para ir mais do que isso porque eu tenho outros compromissos na cidade. Ontem, por exemplo, eu estava no Paraná, e sábado vou viajar para a Europa. Tenho uma agenda que me coloca sempre em movimento. Mas vou bastante para o Pará visitar a minha mãe, então isso me obriga a ir lá, mas não é na aldeia.

Você já sofreu algum tipo de preconceito por ser indígena? Como lidou com isso?
Acho que preconceito, como as pessoas entendem, eu nunca sofri. O que já sofri foi estranhamento, de pessoas não acostumadas com a minha beleza que se espantam. Como minha aparência é diferente, elas imaginam que eu vim lá do meio da floresta, que sou selvagem que não sabe falar português direito. Muitos tomam susto quando me veem. Mas não acredito que isso seja preconceito, acho que preconceito é quando você ofende alguém que é diferente de você. Como sou professor, minha preocupação sempre foi fazer as pessoas pensarem. Acho que o preconceito das pessoas precisa ser cutucado, eu gosto muito de cutucar. Chamo isso de “jogar piolho” na cabeça das pessoas.

Eu sei que você não gosta da palavra “índio”, porque você acha que o Dia do Índio deveria se chamar Dia da Diversidade Indígena. Você comemora o atual Dia do Índio de alguma forma?
Hoje essa data é uma data de reflexão, e para o movimento indígena é uma data de luta. Isso quer dizer que é uma época do ano em que a sociedade está muito mais atenta ao que acontece com os povos indígenas. Então o movimento indígena, que é um movimento político, aproveita essa oportunidade. Ele organiza movimentos em Brasília e em vários lugares do Brasil para chamar a atenção da sociedade. O 19 de abril e a Semana dos Povos Indígenas, que hoje já se chama Abril Indígena, são mudanças que foram acontecendo na sociedade. Eu não gosto dessa data porque ela comemora um índio que não existe, é uma ideia errada que as pessoas têm. Por isso, acho que devia se chamar Dia da Diversidade Indígena, porque quando se fala “índio”, dá a impressão de que somos todos iguais, mas não somos. Somos povos diferentes e somos uma diversidade, então é mais importante sermos tratados como uma diversidade, porque isso ajuda as escolas a olhar cada povo em particular. Cada povo vai ser tratado como um povo diferente. No Brasil, são mais de 300 povos, então, imagina, é uma diversidade muito grande!

O que você acha sobre o que está acontecendo agora na Amazônia?
O que acontece na Amazônia não é uma coisa extraordinária, é algo recorrente. Fogo na Amazônia é mais comum do que a gente pensa. Existe um fogo que é natural, como se fosse fogo de vulcão e, às vezes, quando seca muito o solo, ele gera combustão e começa a queimar. Isso é porque a natureza precisa de renovação o tempo inteiro. Existe outro fogo na Amazônia que é o “fogo controlado”, que os povos ribeirinhos e quem vive lá gera porque eles precisam disso. Mas ele é controlado, ocorre em determinada área para depois plantar a roça, que depois de um tempo vai ser abandonada e ela se renova, os animais vão pegando o restinho de comida que ficou etc. Isso faz parte da sabedoria indígena.
Mas tem também o que chamamos de fogo criminoso, que é quando as pessoas tacam fogo de propósito para pressionar o governo, para ele depois pegar a terra devastada e distribuir entre as pessoas. Ele é colocado na natureza com o objetivo de pôr pasto para depois colocar boi, e o boi destrói tudo, quando ele sai da terra, não dá para plantar mais nada porque o solo fica endurecido.
Esse fogo que a Amazônia vive hoje, que é comum da época do ano, mas que tem também o criminoso, foi atiçado muito pela promessa desse governo de distribuir terra. Isso causa muita tristeza porque as pessoas não valorizam o território, só valorizam o boi e a soja, mas não a vida que tem lá. A gente pensa que o que queima é a árvore, mas tem muitos outros elementos da natureza que queimam e a gente não vê. Acabam com as plantas medicinais, pequenos animais, insetos que fazem a polinização da natureza… Eles não conseguem fugir do fogo. Ele é criminoso porque não está desmatando. Desmatar é uma coisa só, mas o ruim é acabar com a biodiversidade que está lá.

Qual é o principal ensinamento que os indígenas da sua família deixaram para você?
Uma das coisas que eu trago sempre comigo, que é do meu avô, é viver o momento e não querer estar em outro lugar. Esse grande ensinamento me ajuda a não ficar vaidoso e nem achando que sou um cara conhecido, porque me dá um sentimento de pertencimento. Eu pertenço a um povo, então o que eu faço não é por mim, é pelo meu povo inteiro. Eu não sou famoso, é meu povo que está ficando famoso. Isso permite que eu trabalhe sem achar que tudo isso é porque eu sou o melhor cara, o melhor escritor… O mais bonito eu sou mesmo (risos). Eu não posso achar que sou espetacular porque isso é vaidade, e meu povo me ensinou que a gente tem que andar por esse mundo sabendo que estamos de passagem. Por que achar que somos grande coisa se todos nós vamos passar? Temos que viver o presente em um exercício de ser feliz a cada dia.

* Esta matéria é uma versão estendida da entrevista originalmente publicada na edição 139 do jornal Joca.

Quer visitar a redação do Joca ser o repórter mirim convidado da próxima edição? Escreva para joca@magiadeler.com.br.

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Comentários (11)

  • Acauã Miguel Paiva

    1 ano atrás

    o texto é enorme mas eu li tudo era muito legal ainda porque ele falou no começo que ele é daquela origem.

  • Tatiana Galves

    1 ano atrás

    As entrevistas são muito boas

  • RAFAEL ROSENBERG MATTOS

    1 ano atrás

    amei saber mais do povo MUNDURUKU

  • RAFAEL ROSENBERG MATTOS

    1 ano atrás

    eu adorei

  • GABRIEL Rubini Francisco

    1 ano atrás

    eu adorei

  • MariaTeresa Torres Pires

    2 anos atrás

    Amei conhecer mais sobre o povo Munduruku

  • catty.strixino

    3 anos atrás

    nossa as entrevistas suas são demais adoro??????????

  • Ester Damacena

    3 anos atrás

    Eu amei a historia tão legal

  • Sarah

    3 anos atrás

    no meu livro trilhas de aprendizagens tem a história era uma vez na minha aldeia e é muito legal parabém maria flor

  • bernardo 9 anos

    3 anos atrás

    eu adorei , a minha professora pediu para ler e eu adorei

  • bernardo 9 anos

    3 anos atrás

    eu achei muito legal, a minha professora pediu para eu ler e eu adorei

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